
Como uma rapariga descalça, a noite caminhava leve e lenta sobre a relva do jardim. Era uma jovem noite de Junho, a primeira noite de Junho. E debruçada sobre o tanque redondo ela mirava extasiadamente o reflexo do seu rosto.
Do jardim via-se a casa, uma casa grande cor-de-rosa e antiga que, toda iluminada nessa noite de festa, espalhava no jardim luzes, brilhos, risos, música e vozes. A luz recortava o buxo dos canteiros e a música misturava-se com o baloiçar das árvores.
Pelas janelas abertas avistavam-se pares dançando e vestidos claros de raparigas, vestidos que flutuavam entre os passos e os gestos. Vultos de namorados passavam entre as cortinas e vinham apoiar-se no peitoril das janelas, inclinados sobre a noite. Às vezes um riso mais agudo cortava, como um pequeno punhal, a água lisa dos tanques.
Vistas do jardim essas coisas pareciam feéricas e irreais. Delas subia, perante a alegria serena da noite, urna alegria rápida e agitada, desgarrada e passageira, um pouco triste e cruel.
Lúcia tinha dezoito anos e era este o seu primeiro baile. Tinha vindo com a tia que era sua madrinha.
A grande sala estava cheia de gente dançando, pares que se multiplicavam nos enormes espelhos esverdeados. Ao fundo um grupo de músicos tocava. Pelas janelas abertas entravam os perfumes do jardim. As cortinas inchavam-se de brisa.
A filha da dona da casa apresentou Lúcia às amigas. Estas falaram-lhe com um ar alheio e sorriram com ar indiferente. Depois continuaram as suas conversas como se ela não estivesse ali.
A música parou, outras raparigas acompanhadas por rapazes vieram reunir-se ao grupo onde a filha da dona da casa estava.
Lúcia tentou seguir a conversa. Fez uma pergunta mas ninguém lhe respondeu.
A música começou outra vez a tocar, os rapazes convidaram as raparigas para dançar e o grupo desfez-se.
Lúcia ficou sozinha. Ninguém a tinha convidado para dançar.
Olhou em redor procurando um lugar onde estivesse menos exposta à vista de todos. E viu do outro lado da sala uma cadeira vazia perto de uma janela aberta, meia escondida pela cortina.
No caminho passou em frente de um espelho e olhou-se. Mais urna vez verificou quanto o seu vestido era feio.
Era um vestido que lhe tinha sido dado pela tia que era sua madrinha.
Oito dias antes, a madrinha tinha aparecido em casa de Lúcia.
— Lúcia — disse ela — de hoje a uma semana vens comigo a um baile.
— Mas não tenho vestido de baile — exclamou Lúcia.
— Eu tenho um meu que se pode arranjar para ti.
Lúcia achou o vestido muito feio e balbuciou com cuidado:
— Lilás fica-me mal.
— Na tua idade tudo fica bem — respondeu a madrinha.
A costureira começou a marcar o vestido com alfinetes e a passar alinhavos.
— No dia do baile tens que pôr saltos altos — disse a madrinha. — Põe-te em bicos dos pés para se calcular a altura.
— Não tenho sapatos de saltos altos — respondeu ela. Mas a tia, distraída, não ouviu.
Sempre sonhara ir a um baile. Apetecia-lhe apaixonadamente ir àquele baile.
A sua vida, entre o pai viúvo e arruinado, os dois irmãos, as velhas criadas faladoras, o jardim inculto, cheio de musgos e ervas selvagens, não era uma vida triste mas uma vida monótona e modesta. Às vezes, no colégio, algumas das suas amigas falavam de um mundo de festas e divertimentos, um mundo onde tudo era fácil e todas as pessoas eram ricas. Agora, aquele baile era para ela a porta aberta para esse outro mundo.
Em casa fez uma busca ao sótão.
Lúcia descobriu uns sapatos de salto alto que, embora um pouco largos, lhe serviam.
Mas estavam fora de moda e em mau estado com o forro azul roto nas biqueiras e aqui e além manchas de bolor.
Mas agora, ali, na sala de baile, escondida atrás de um grupo de pessoas e voltada para o espelho murmurou:
— Era melhor não ter vindo.
O espelho era antigo e tinha um fundo embaciado, manchado e verde onde Lúcia se via como uma afogada boiando numa água sinistra.
— Estou pálida - constatou - preciso de pôr mais rouge.
Resolveu ir ao quarto de vestir.
— Para que vim eu a este baile? - Pensou. - Aqui o meu vestido é uma espécie de anti-passaporte que me proíbe a passagem para o mundo deles.
Desceu a escada. Na entrada parou em frente de um grande espelho de moldura dourada, pendurado por cima de um trenó. Estava ainda mais pálida agora.
Então, no fundo do espelho, atrás da sua cara, viu, descendo a escada, a terceira rapariga. Era loira, não alta mas esguia e tinha um ar aéreo. O vestido de chiffon cor-de-rosa pálido dançava em redor de seus passos.
— Não se veja nesse espelho. Faz muito má cara.
Lúcia perplexa murmurou:
— Pois é, talvez...
— A sua pele é linda e branca — atalhou a rapariga, e, ali, parece cinzenta. É melhor não olhar para lá.
Depois hesitou um instante, sorriu de novo e, olhando Lúcia, continuou:
— Sabe... é preciso não dar importância a este género de espelhos. São como as pessoas más, não dizem a verdade.
— Pois, pois é — concordou Lúcia tentando entrar no imprevisto tom da conversa.
— Sabe — e a rapariga tomou um ar ausente como se falasse sozinha — não sabemos ao certo o que querem os maus reflexos, os maus olhares, as más palavras. Talvez a perdição da nossa alma. E temos que manter nossa alma livre.
Depois, voltou a sorrir, sacudiu os cabelos e disse:
— Tenho de ir, até já.
E afastou-se.
A cadeira ao pé da janela continuava vazia.
Lúcia contornou os pares que dançavam e foi sentar-se ali.
A noite poisou a sua mão fresca sobre a sua cara afogueada.
O rapaz encostou-se à janela.
— Cheira bem, cheira a erva cortada, a buxo, a tílias, a madressilva.
— É — aprovou Lúcia debruçando-se também na janela.
— Tudo parece tão misterioso: o brilhar do luar entre as sombras e as folhas das árvores, o reflexo da lua no lago. O lago parece um espelho. É uma noite mágica.
De súbito o rapaz acordou da contemplação e com um leve arrebatamento perguntou:
— Estas noites assim não a assustam?
— Assustar? Porquê?
— Tanto azul, tantos brilhos, brisas, perfumes, parecem a promessa de uma vida deslumbrada que é a nossa verdadeira vida. Mas, ao mesmo tempo, há nessas noites uma angústia especial — há no ar o pressentimento de que nos vamos despistar, nos vamos distrair, nos vamos enganar e não vamos nunca ser capazes de reconhecer e agarrar essa vida que é a nossa verdadeira vida.
Tomou-lhe a mão para a ajudar a levantar-se e guiou-a para o lugar da dança.
— Não sei dançar.
— Não faz mal. Eu gosto de dançar consigo mesmo que dance mal.
O rosto de Lúcia iluminou-se. Não era só o elogio daquele rapaz bonito que a alegrava. Era, posta nela, a atenção de alguém que pertencia ao mundo do brilho e poder onde ela queria penetrar.
Estavam agora dançando no meio da sala, precisamente no meio da sala, debaixo do lustre, quando o sapato esquerdo escorregou do pé de Lúcia. Olhou e viu o sapato separado de si no meio da sala. Ia a dizer: — É meu — quando uma rapariga começou a rir e perguntou:
— O que é aquilo? Mas o que é aquilo?
Várias pessoas olharam. Riram. As palavras cruzavam-se no ar.
— Um sapato!
— Todo roto!
— De quem será?
— Não é de ninguém. É uma partida?
— Talvez não seja partida. Talvez seja de alguém que o perdeu.
— Ninguém é capaz de vir para um baile com um sapato daqueles.
Quando a música acabou e os pares abandonaram o espaço da dança o sapato ficou sozinho no centro da sala, esfarrapado e miserável sobre o chão polido.
O criado foi buscar as pinças que estavam penduradas ao lado do fogão e agarrou com elas o sapato e levou-o.
A música recomeçou a tocar.
— Tenho de sair daqui depressa, depressa - murmurou Lúcia.
Levantou-se e saiu da sala.
Perto da escada havia uma porta aberta que dava para um quarto pouco iluminado. Entrou e fechou a porta atrás de si.
Mas então viu que o lado de dentro da porta era, de cima a baixo, forrado de espelho. E nesse espelho ela viu-se toda, pálida, com o vestido detestado escorrendo desde os ombros até aos pés.
Lúcia olhou em redor. Em frente da porta por onde tinha entrado outra porta abria para a varanda.
— Acolá ninguém me olha — calculou ela.
E refugiou-se na varanda.
Começou a imaginar, que era ela própria e estava naquele mesmo dia, naquele mesmo baile, mas que tinha um maravilhoso vestido, o mais belo vestido que havia no baile. E quando ela passava, as pessoas murmuravam: — Que vestido maravilhoso! — Ouviu o roçar leve do vestido pelo chão e viu a sua imagem brilhando nos espelhos.
Então lembrou-se:
Naquele ano, no dia em que fizera dezoito anos, a madrinha tinha-lhe dito:
— Lúcia, tens dezoito anos, é preciso pensar no teu futuro. Não conheces ninguém, não és convidada para nada, andas vestida como uma pobre. Vem viver comigo que sou tua madrinha e não tenho filhos. Se vieres viver comigo, eu dou-te todas as coisas de que precisas.
— Não posso deixar o meu pai e os meus irmãos! — Disse Lúcia.
— Bem — respondeu a madrinha. — Viver é escolher. Se um dia escolheres um caminho diferente, vem viver comigo.
Aquele baile, aquela gente que a ignorara e humilhara era o mundo, que ela decidira escolher. Aqueles eram os vestidos, os sapatos, as jóias que ela queria possuir. Aquele o poder que desejava.
Poisou as mãos sobre a pedra fria do corrimão da varanda e murmurou:
— Tenho de escolher outro caminho. Um dia hei-de voltar aqui com um vestido maravilhoso e com sapatos bordados de brilhantes.
II
Daí a dias Lúcia foi viver com a tia. A partir do dia da escolha, o seu êxito tomara-se mecânico. Ela nem precisava quase de lutar por ele, ele aparecia-lhe, tudo o suscitava. Era como se nela agora houvesse uma fatalidade de triunfo.
Casou com um homem rico que depois de ter casado com ela se tornou cada vez mais rico. A sua beleza crescia de ano para ano, novos amigos a procuravam todos os dias.
Mas, às vezes, Lúcia fechava-se à chave, sozinha, no seu quarto e tirava a caixa da gaveta e o vestido da caixa.
Depois estendia o vestido lilás em cima da sua cama e olhava-o longamente e pensava:
— Preciso de queimar este vestido.
E assim passaram vinte anos. E nesse vigésimo ano em certa manhã de Maio, Lúcia recebeu um convite. Um convite para um baile no primeiro dia de Junho. Um baile na mesma casa onde ela, vinte anos antes, tinha ido com um vestido lilás; feio e fora de moda.
Aquele convite para um baile, na mesma casa, na mesma noite de Junho era como um encontro marcado pelo destino. E pareceu a Lúcia que era preciso que agora ela fosse àquele baile para com o seu triunfo, o seu sucesso presente, apagar, até ao último vestígio, a memória da humilhação ali antes sofrida. Era preciso que ela, como a madrasta da Branca Flor, pudesse naquela noite perguntar a todos os espelhos:
— Dizei-me espelhos, qual a mais bela, a mais perfeita, a mais rica de triunfo, aquela que está em seu reino mais segura?
E era preciso que todos os espelhos respondessem:
— Tu.
Quando ela apareceu no limiar da grande sala de baile, primeiro, ninguém acreditou no que via. Agora os vestidos de baile já não se usavam compridos até ao chão: a saia de Lúcia terminava um pouco acima das canelas. E os seus sapatos bordados de brilhantes viam-se bem. Algumas pessoas pararam de dançar.
— Não é possível que sejam verdadeiros brilhantes!
— É uma imitação!
— É inacreditável!
— Mas são verdadeiros!
— São falsos com certeza!
— Mas nunca vi jóias falsas brilharem tanto!
Houve um primeiro movimento de espanto e quase de escândalo.
Mas Lúcia começou a dançar. Os seus passos traçavam círculos sucessivos de luz, fogo e brilho. Todos os olhares a seguiam. O lume dos diamantes espalhara-se em toda a sua pessoa.
E à medida que a sua dança dava a volta à sala, Lúcia ia-se vendo de espelho em espelho. Cada espelho lhe dizia «tu». E ela sacudia os cabelos e batia as pestanas.
Era já o meio da noite quando disse a si própria: — Agora tenho de voltar àquela sala onde há vinte anos me fui esconder. Tenho de ver-me de novo no espelho que está atrás da porta, no espelho onde tive vergonha do meu reflexo.
Lúcia fechou a porta atrás de si e virou-se para o espelho. Era o mesmo espelho, ainda lá estava. Mas também a mesma imagem lá estava ainda.
Todo o seu corpo gelou num momento de horror. O seu sangue parou de correr. Um grito ficou estrangulado na sua garganta. Viu-se no espelho. Viu-se e viu que o vestido que ela tinha vestido era ainda o mesmo, era ainda o antigo vestido lilás.
Lúcia queria gritar mas o grito estava preso no seu pescoço.
Então o espelho, muito devagar começou a mexer-se. Girou lento sobre si mesmo e a porta abriu-se deixando entrar um homem.
Inclinou-se ligeiramente, com ar amável, segurou o braço de Lúcia e disse:
— Vamos para a varanda.
Lúcia respirou com esforço, sentou-se no banco de pedra e disse:
— Parece-me que não o conheço.
— Conheces — respondeu o desconhecido. — Desde há vinte anos. Estivemos juntos nesta varanda, numa noite de Junho, há vinte anos. Foi aqui que nos conhecemos.
— Eu estive, aqui mas estava sozinha.
— Eu espiei-te. Vi-te.
— Vai-te embora — murmurou Lúcia.
Mas o homem respondeu:
— Há vinte anos, aqui, nesta varanda escolheste o outro caminho. Eu sou o outro caminho.
— O que é que tu queres de mim agora?
— Quero o sapato do teu pé esquerdo.
— Não, o sapato, não.
— Ouve, Lúcia. Lembra-te: a partir daquela noite de há vinte anos tiveste uma vida maravilhosa. Nada te foi recusado, nunca mais sofreste uma humilhação. Outros sofreram, foram abandonados, humilhados, vencidos. Tu, não. Tu venceste sempre. Dá-me o teu sapato: é o preço do mundo.
— Não posso ficar no meio de um baile com um pé calçado e o outro descalço.
— Quando aqui te encontrei há vinte anos também tinhas um pé calçado e outro descalço. Mas eu penso em tudo. Não me esqueço de nada. Trouxe outro sapato para o teu pé esquerdo.
Era um sapato de salto alto, forrado de seda azul, velho, miserável, esfarrapado.
Lúcia quis fugir mas o seu corpo estava rígido e ela não pôde mover nenhum dos seus membros. Quis gritar mas a sua voz estava muda.
O homem inclinou-se, tirou-lhe do pé o sapato de brilhantes e calçou-lhe o sapato de farrapos.
Quando ao clarear do dia encontraram Lúcia morta na varanda, ninguém quis acreditar no que via. Dizia-se:
— Não é possível, não pode ser.
Parecia inexplicável.
Mas veio o médico e constatou que a morte tinha sido causada por uma síncope cardíaca. Era uma explicação.
O facto de ter desaparecido o sapato também era explicável: alguém que a vira morta ou julgara adormecida não tinha resistido à tentação dos brilhantes.
Mas o que era inexplicável era o facto dela ter no pé esquerdo um sapato forrado de seda azul, um sapato de aspecto miserável, roto e coberto de manchas esbranquiçadas de bolor!
Para isso nunca apareceu explicação.
O acontecimento foi discutido com paixão obcecada durante alguns meses. Depois foi esquecido.
Sophia de Mello Breyner Andresen,
“História da Gata Borralheira” in Histórias da Terra e do Mar (texto com supressões)