sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Outras Leituras: Ventos da Serra

Olho as crianças que rodeiam o gorducho bonacheirão, vestido de vermelho e de longas barbas brancas, esperando pacientemente a sua vez para lhe confessarem os seus mais prementes desejos, e outros Natais me vêm à memória.

Quando eu era miúdo, não tínhamos conhecimento da existência do Pai Natal. Quem trazia os presentes era o Menino Jesus. Nessa altura, os presentes não eram nada iguais aos que agora se recebem. E compreende-se: o Menino Jesus, como era pequenino, não podia alancar às costas um grande e pesado saco atestado de coisas pesadas.

Vinha a noite da consoada e nós comíamos uma enorme posta de bacalhau cozido com batatas e tronchuda. A seguir, deliciávamo-nos com a aletria, as rabanadas e os docinhos de chila, tudo abundantemente polvilhado com canela. Para enganar o sono, jogávamos o par e o pernão com figos secos e pinhões. E quando o sono tomava conta de nós, descalçávamos as socas, púnhamo-las junto da lareira e íamos em meias para a cama.

Deitava-me e pensava nas asneiras todas que tinha feito e nos pensamentos ruins que tivera e de que ainda me lembrava, a ver se o livro do Céu (o tal em que, segundo a minha mãe, o Menino Jesus apontava todas as asneiras dos meninos) não tinha nada escrito na folha onde estava o meu nome. E acabava por dar um grande suspiro...

No dia seguinte, logo depois do nosso galo cantar, eu levantava-me da cama e corria para a cozinha. E ficava a olhar, descoroçoado. Dentro das minhas socas havia sempre um par de meias de lã de ovelha, uma garfada de figos secos e uma dúzia de rebuçados dos mais baratos. Prometia a mim mesmo que a partir daquele dia não havia de ter maus pensamentos, nunca mais a minha boca se abriria para soltar um palavrão, se algum moço se metesse comigo, e até me batesse, eu ficaria de braços cruzados, e havia de fazer todos os recados que a minha mãe me pedisse.

Prometer, bem eu prometia. E se um ano só tivesse dois dias também cumpria. Mas um ano tem tantos dias...

António Mota. Ventos da Serra
(adaptado)


Se quiseres saber mais sobre António Mota, vai a http://www.nonio.uminho.pt/netescrita/pt/autores/bio_amota.html



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